terça-feira, 18 de março de 2008
O jogo de Pollyanna
(...)
— Mas que susto me pregou, Miss Pollyanna — gritou Nancy enquanto corria em direção ao rochedo ao longo do qual Pollyanna tinha acabado de deslizar.
— Assustou-se? Ah, desculpe, mas não precisa de se preocupar comigo, Nancy. O pai e as senhoras da caridade também se preocupavam, até que se convenceram de que eu voltava sempre bem.
— Mas eu nem sabia que se tinha ido embora! — exclamou Nancy, enquanto agarrava na mão da menina, apressando-se a descer o morro. — Não a vi sair, nem ninguém viu. Até parece que voou do telhado.
— É verdade, quase que voei, desci pela árvore!
Nancy parou bruscamente.
— Desceu por onde?
— Desci pela árvore, junto à minha janela.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou Nancy, recomeçando a correr. — Nem imagino o que a sua tia dirá quando souber!
— Não faz mal, eu digo-lhe — prometeu a menina alegremente.
— Por favor, não lhe diga nada!
— Por que, não me diga que ela se preocupa com isso! — respondeu Pollyanna imperturbável.
— Não... Sim. Não importa. Estou muito preocupada com o que ela possa dizer — disse Nancy determinada a evitar que Pollyanna fosse repreendida. Mas é melhor despacharmo-nos, tenho que lavar a loiça.
— Eu ajudo — prometeu logo Pollyanna.
— Oh, Miss Pollyanna! Não pense nisso.
Por momentos, fez-se silêncio. O céu escurecia rapidamente. Pollyanna agarrou-se com mais firmeza ao braço da sua amiga.
— Apesar de tudo, acho que estou contente por você se ter assustado, porque assim veio à minha procura.
— Pobre cordeirinho! E deve estar cheia de fome. Receio que tenha de comer apenas pão e leite na cozinha comigo. A sua tia não gostou nada que não tivesse descido para o jantar.
— Mas eu não podia. Estava lá em cima.
— Sim, mas ela não sabia isso — observou Nancy. — Tenho pena que tenha de ser pão e leite.
— Não faz mal. Eu estou contente.
— Contente? Por que?
— Porque gosto de pão e de leite e gosto de comer consigo. Não tenho dificuldade nenhuma em estar contente com isso.
— A menina parece que não tem dificuldade em ficar contente seja com o que for — respondeu Nancy, recordando as tentativas de Pollyanna para ficar contente com o quartinho do sótão.
Pollyanna sorriu docemente.
— Pois o jogo é mesmo isso.
— O jogo?
— Sim, o “jogo do contente”.
— Mas de que está a falar?
— É um jogo. O pai ensinou-mo e é muito giro — respondeu Pollyanna. — Sempre o jogamos, desde que eu era pequena. Ele ensinou-o também às senhoras da caridade e algumas delas também o jogavam.
— Mas o que é? Não sou muito de jogos.
Pollyanna riu de novo mas à luz do crepúsculo o rosto dela parecia tristonho.
— Começamos a jogá-lo quando recebemos umas muletas na coleta da missão.
— Muletas?
— Sim. Eu queria uma boneca e o pai escreveu-lhes, pedindo-a. Mas, quando a encomenda chegou, não tinham mandado nenhuma boneca e sim umas muletas de criança. Uma senhora enviou-as pensando que elas podiam ser úteis a alguma criança. E foi assim que começamos.
— Mas não consigo perceber que jogo é que pode haver nisso — disse Nancy quase irritada.
— O jogo era exatamente encontrar alguma coisa com a qual estar contente, não importa o quê — respondeu Pollyanna com ar sério. — E começamos naquela altura, com as muletas.
— Meu Deus! Não vejo nada para estar contente. Recebeu um par de muletas quando queria uma boneca!
Pollyanna bateu as palmas.
— É isso — gritou ela — eu também não percebi logo. Teve que ser o pai a dizer-me.
— Bom, então espero que também me diga — retorquiu Nancy impaciente.
— Pois o jogo é ficar contente por não precisarmos delas! — exclamou Pollyanna triunfante. — Vê, é muito fácil quando sabemos como fazer!
— Mas que coisa estranha! — exclamou Nancy, olhando Pollyanna com ar receoso.
— Não é engraçado? É giríssimo — continuou Pollyanna entusiástica. — Desde então passamos a jogá-lo sempre. E quanto mais difícil é, mais divertido se torna resolvê-lo. Só que, por vezes, custa muito. Como, por exemplo, quando o meu pai foi para o céu e não ficou mais ninguém senão as senhoras da caridade.
— Ou quando a metem num quartinho no sótão quase sem nada lá dentro — resmungou Nancy.
Pollyanna disse que sim com a cabeça.
— Essa foi um pouco difícil ao princípio — admitiu ela. — Especialmente quando eu estava tão só. Não me apetecia continuar a jogar e naquela altura estava à espera de coisas boas! Lembrei-me, então, de como detestava ver as minhas sardas no espelho e vi aquela linda vista da janela. Percebi logo que tinha descoberto coisas para ficar contente. Quando estamos à procura de coisas boas para ficarmos contentes esquecemo-nos das outras. Como da boneca que eu queria.
— Estou a perceber — respondeu Nancy, engolindo em seco.
— Mas normalmente não leva muito tempo. E muitas vezes já penso nelas quase sem pensar. Habituei-me a fazer este jogo. Eu e o pai gostávamos muito dele. Se calhar agora vai ser um pouco mais difícil porque eu não tenho ninguém com quem jogar. Talvez a tia Polly jogue comigo — acrescentou ela pensativa.
— Minha Nossa Senhora! — murmurou Nancy entre dentes. Depois disse mais alto: — Ouça, Miss Pollyanna, eu não sei se consigo jogar bem, mas se quiser posso tentar jogar consigo!
— Oh, Nancy! — exultou Pollyanna. — Isso é esplêndido, vamos divertir-nos imenso.
— Sim, talvez — condescendeu Nancy com algumas dúvidas. — Mas não deve depositar grandes esperanças em mim. Nunca fui muito boa em jogos, mas vou fazer o possível. Há de ter alguém com quem jogar — concluiu ela enquanto entravam as duas juntas na cozinha.
Pollyanna comeu o seu pão e bebeu o seu leite com muito apetite. Depois, por sugestão de Nancy, dirigiu-se à sala de estar onde a tia estava sentada a ler. Miss Polly levantou os olhos com firmeza.
— Já comeste o teu jantar, Pollyanna?
— Sim, tia Polly.
— Tenho muita pena de me ter visto obrigada a mandar-te para a cozinha comer pão e leite.
— Não faz mal, estou muito contente com isso, tia Polly. Gosto muito de pão e leite e também da Nancy. Não se preocupe.
(...)
Pollyanna (Eleanor H. Porter )
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